- porque dessa fruta eu chupo até o caroço! -

Tuesday, September 26, 2006

Estavam numa ilha, aparentemente tropical, cercados de árvores em meio a uma clareira. Curtem as horas sem muita preocupação com nada. Ou quase. Ela brinca com alguns insetos, animais, plantas. Ele observa algo. Ela cantarola alguma cantiga e dança segurando em alguns galhos e se firmando nas pontas dos pés como que num balé, tendo toda a mata verde como parceira lhe segurando pelos bracinhos finos. Ele finge ver alguma coisa, mas na verdade vê a dança que finge não ver. A ama, não resta dúvidas. E ela a ele, incomensuravelmente. Mas são distintos. Dado alguns minutos, ela some pela mata, como que se tivesse entrado numa trilha. Alguns segundos e aparece do outro lado e dessa vez ele não vira, pois não a observava mesmo. Ela sorria. Ele, sério, mas não carrancudo ou taciturno, apenas sério. Cortava alguns raminhos e os guardava em saquinhos vazios e, aparentemente, limpos. As duas mochilas estão encostadas num canto. Chegaram a não muito.
- Nossa!! Isso sim é um lagarto. Olha, preto!
Ele espia, vira novamente quase por ignorar e como que por um estalo interrompe o movimento e retorna seus olhos para o enorme animal ali parado.
- Caralho!!! O que essa porra está fazendo aqui?!
Ela ri, maravilhada com o animal, enorme, lento, encouraçado.
- Puta merda, Bia! Essa porra é um dragão de Komodo! Quê que essa merda faz aqui, meu Deus?!?
- Não chega perto, Bia! Tu conhece esse bicho?
Ela ri mais abestalhada com os olhos fitos no animal a brilhar e repetindo baixinho para ele: “komodo, komodo, komodo”.
- Komodo... que nome bunitinhu!! Será que morde? Parece tão lento, tão gordo... quase um iguana! E ria alto.
- Não, ô doida! Essa porra não só morde como mata! Mas que merda! Essa porra só existe na ilha de Komodo, o quê que tá fazendo aqui!?!
- Porra não, amor. Ele é bonitinho, olha. Como um calanguinho! Quer dizer, um calangão! Risadas.
- Calangão... tu vai ver o calangão se ele te morder. Esse bicho é verdadeiramente perigoso. A gente tem que ligar pra direção do parque, avisar que tem isso por aqui. Capaz que altere o ecossistema, sei lá. Mas, puta merda, quem foi o cabeção que trouxe um dragão de Komodo pra cá?
- Ora, alguém que queria aumentar a biodiversidade brasileira. Risos.
- Vai é desestabilizar a porra toda! Caralho, Bia! Não chega perto assim desse bicho, que merda!
- Só uma dancinha pra recepcioná-lo, vai... deve estar com saudade da família, olha pra ele. Essa ilha fica longe? Ele tá meio triste.
- Tá com fome e quer comer você. Puta merda, Bia. Tu é boba mesmo, hein? Que merda... Sai daí, parece uma criança, que merda! Larga mão de ser doida!
- Ai, você é muito ranzinza! Vem dançar com a gente, vem! Ria.
- Antes ranzinza que imbecil. Esse bicho tem milhões, sei lá, bilhões de bactérias na saliva. Uma verdadeira bomba! Se te morde, fudeu! Daqui não temos muito o que fazer. Vai, anda, sai daí.
- Ahhh... só isso?! Você também tem milhões, talvez bilhões de bactérias na saliva, mas mesmo assim me beija, me lambe, me chupa... hmmm. Gargalhadas.
- Ei, Bia! Eu to falando sério! Deixa de babaquice! Esse bicho mata um boi com uma mordida, cara! Deixa de besteira. Olha só, ele tá de olho em você. Vou precisar ir até aí te arrancar de perto dele?! Que merda...
- Vem! Vem, bobo! Vem dançar com a gente, ó! E saiu rodopiando, cantarolando qualquer coisa. Tão feliz, tão plena, tão cheia. O dragão era sua última ameaça ali, era seu amigo, o animal selvagem que surgiu para abrilhantar o dia, para que contasse depois aos amigos, aos familiares “eu vi um dragão de Komodo! Vocês nem acreditam!”, mas o que no mundo dela era último, no universo compartilhado entre os três atores, era o primeiro. Ele, como que prevendo, se levantara, atento, vendo-a bailar, imóvel. Somente rompeu em correria quando a viu gritar e pular para trás. O dragão corria apressado para o outro lado. Estava feito a sua parte, agora era só esperar. Ela caiu numa pedra, mas não sentiu dor. Olhava pra perna, pra mordida, um pequeno filete de sangue escorrendo, o desenho da mordida.
- Puta que pariu, Bia! Caralho! Que merda! Porra! Caralho! Eu te falei, merda! Deixa eu ver isso... puta merda, Bia!
- Ai, bobo! Só uma mordidinha leve, já já passa...
- Como “já já passa”?! Tá louca?!?!? Isso vai te matar! Puta merda, temos que te levar prum hospital! Ai, meu Deus! O que tu foi me arrumar?, cacete! E a porra do barco só vem amanhã, é!?!? Caralho, Bia! Ca-ra-lhow! Não acredito nisso...
- Ai, bobo... eu que sou atacada e você aí quase chorando.
- Caralho, Bia, você não está prestando atenção no que está acontecendo!
- Claro que tô... o nosso convidado me deu uma mordidinha e agora tá ali, ó... me zoiando. Ei! Seu safado! Vou te dar palmadas, hein.
Ele parecia não ouvir. Ajoelhado, tentando pensar, com os olhos no chão, repetia baixo “não acredito nisso. Eu não acredito nisso.”
- A gente tem que fazer algo... vamos pra praia, acender uma fogueira e tentar que alguém passando nos veja. Você não vai agüentar até amanhã. Nós não temos álcool, nem antibióticos, nem nada! Que porra. Vem, Bia, vamos pra praia senão tu vai morrer, merda!
- Sério? Vixe...
Ele a pegou pelo braço e retornaram pela pequena trilha até chegarem na praia. Não passou pela cabeça de ambos que poderia existir outros dragões já que na ilha não havia qualquer habitação ou refúgio ou o que quer que pudesse justificar aquele animal como propriedade de alguém. No caminho da praia ele recolheu alguns galhos secos, folhagens secas, gravetos. Ela ajudou.
- Você iria comigo para qualquer lugar?
- Ora porra. Mas que pergunta é essa?!
- Só quero saber se você iria comigo para qualquer lugar, ué... é simples.
- Claro que sim, claro que sim! Ora...
- Mesmo pra morte?
(...)
- Você morreria comigo ou não?
- Ora, Bia, mas que pergunta! Deixa de besteira e me ajuda aqui.
- Ué... eu só queria uma resposta simples: sim ou não. Toma. Não quer responder?
- O quê, Bia?
- Se você morreria comigo... se me acompanharia mesmo até a morte.
- Sim, Bia. Iria... te acompanharia até a morte. Me dá os fósforos.
Ele armou grandes troncos e no meio folhagem pelo meio e os gravetos em cima. Riscou um fósforo, protegeu-o do vento e baixou para perto das folhas secas. Em pouco tempo a fogueira criptava. Levantou-se e bateu a areia do joelho quando sentiu o dedo dela em sua boca. Tinha gosto de sangue.
- Que porra é essa, Bia!?Tu... tu... ?
- Para ficarmos juntos, meu bem. Rindo. Como num pacto de sangue. Rindo. Se eu morrer, você morre junto. Se eu me salvar, nos salvamos. Estamos juntos, meu bem e isso é lindo!
- Caralho... caralho... eu não acredito! Cuspindo, batendo os dedos na língua em desespero. Que merda, Bia! Por quê tu fez isso!?!?!! Caralho! Eu não acredito!!
- Ai, você é tão trágico! Relaxa, vai. Logo aparece alguém e leva a gente.
- PORRA, GAROTA! VOCÊ NÃO ESTÁ VENDO QUE SE NINGUÉM APARECER A GENTE VAI MORRER!? MORREEEER! PORRA! TU ACHA ISSO ENGRAÇADO!!???!!
- Ué, continuaremos juntos... aqui ou lá. Apontando pra cima e rindo.
Talvez tenha sido aquela risada, ou o deboche com a situação, a despreocupação, a inconseqüência, ou tudo junto, não sei. O que sei é que algo naquele momento incendiou o peito e a alma dele. Não havia mais pensamento, somente raiva. Não havia mais razão, ele era constituído, dos dedos dos pés aos fios do cabelo, de emoção pura. Deixou de lado qualquer lembrança passada e passou a agir de acordo somente com o que conseguia enxergar e a única coisa que enxergava era ódio. Partiu para cima dela e lhe desferiu um soco na maçã do rosto tão forte e rápido que ainda a atingiu em meio a um sorriso. Ela caiu, estatelada na areia, o corpo quase todo debruçado na areia, virado pela pancada, mas não teve tempo de se espantar, pois ele não parou e assim que a viu no chão passou a chutá-la com fúria e toda força que conseguia reunir. Ela gritava. Ele não ouvia. E não fingia. Acertou-lhe nas costelas e um bem no rosto; foi esse que quebrou o nariz. Ela tentou se erguer, escapar, ele chutou-lhe o braço esquerdo e ela desabou. Ouviu-se um barulho de ossos quebrando entre mais gritos dela cada vez mais desesperados. Ele a pegou pelo cabelo e puxou sua cabeça pra trás. Gritava em seu ouvido: “POR QUÊ?! POR QUÊ!? SUA VADIA!!! SUA VADIAAAAAAAAHHHHHHHH!!!” e jogou sua cara na areia. Ela chorava, em desespero, em meio aos grãos. Ele se ergueu. Passos lentos. Arfava. Buscou um dos tocos da fogueira. Se perguntava porquê ela fizera aquilo... porquê? Queria morrer com ele?, pois bem, ele daria o seu desejo, mas ela morreria nas mãos dele. Na ponta da madeira a chama começava a queimá-la de jeito. Ele a olhou, deitada, suja de areia, sangue, baba, lágrimas, tentando se erguer com apenas um braço, o outro em posição impossível, rastejando. A noite começava a cair. Para ele, ali, era um caminho já sem volta... chorava. Chorava por sentir o frio da morte, do ato inconseqüente e irreversível, por não se reconhecer quando mais precisou de si. Chorava, mas nada podia voltar e com toda força desferiu o primeiro golpe na cabeça dela que voltou a afundar na areia. A brasa da ponta saltou, a chama quase se apagou, mas resistiu ainda até a quarta pancada quando enfim se apagou. Depois disso, a madeira ainda pouco queimada, agüentou firme e as pancadas produziam um som seco até que se formou uma massa de sangue, ossos, areia, miolos. Ele não contou, nem quis. Só parou e se deixou cair quando o braço não mais tinha força de erguer o toco para bater novamente. Caiu o grosso galho. Caiu ele. Nos seus olhos somente as primeiras estrelas da noite. No lusco-fusco, se viu sozinho, insano, assassino, e já condenado. Não percebia a fogueira queimando bestamente ao lado, o corpo ali estatelado com a cabeça afundada na areia. Apenas a massa vermelha na areia. Não via o dragão, de longe, ainda em meio à mata rasteira, o único a testemunhar os últimos minutos deles na ilha. O último a senti-los. Ele viu no céu, entre as estrelas no fundo azul, toda a sua vida perpassada desde momentos até então esquecidos até o último grito de dor que a ouviu proferir. Só não a viu tirar o sangue que pusera em seus lábios de outro arranhão no braço. Isso, os seus olhos afogados em lágrimas, imóveis, congelados, como se o corpo já se preparando para o fim iminente começasse a abrir mão deles, não viu.